Soul

Tocava Take Five quando ela entrou no velho Pub. Tinha as luvas e o sobretudo encharcados pela chuva lá fora, mas logo que os tirou, o vestido negro por baixo revelava suas curvas. Foi até o bar, tentando não atrair os milhares de olhares indiscretos que a seguiam. Pediu que o barman guardasse suas coisas em um dos compartimentos atrás do balcão e o fez uma pergunta. Ele apontou na minha direção, ao fundo da área onde ficava a platéia. Ela demorou um pouco até olhar na minha direção. Na verdade, não sei se olhou, no instante seguinte me lembro dela se sentando a minha frente.

- Você está horrível - Ela sempre foi sincera assim, não estranhe.
- Eu sempre estive.
- Porque me chamou aqui?

Olhou ao redor, o ambiente carregava uma meia-luz que ocultava todos os rostos das pessoas distantes. Os bancos eram de couro legítimo e colados ao chão, guardando a pequena mesa de centro. Entre essas "ilhas", plantas preenchiam o máximo do espaço possível. O único espaço aberto era próximo do palco, montado distante do balcão de bebidas.

- Eu não te chamei aqui.
- O quê? Você me chamou sim, o que está acontecendo com você?
- "Você"?

Ela me encarou em silêncio durante um longo tempo. Talvez imaginasse sobre o passado, os dias em que havia tão pouco a se preocupar. Ou talvez pensasse no futuro, os dias do fim, em que nada faria sentido. Mas não sei se ela estaria pensando no agora. Talvez fosse os dois copos de vinho que eu havia tomado antes de ter a chamado.

- Quem é você? Você está vivo? - Ela perguntou com um certo (e como era agradável) desdém na voz.
- Eu não estou vivo desde que morri em Viçosa.
- Essa semana milhares de coisas aconteceram, e hoje, você aqui, bebendo no fim do mundo.
- Ao menos é um bom vinho.

Ela estava se cansando. Entendiava-se facilmente, talvez fosse minha culpa isso. Os olhos passeavam procurando algo mais interessante pra usá-los. So What começava a tocar. Ou talvez fosse a chuva lá fora. 

Jazz e chuva, são coisas que minha alma nunca sabe diferenciar.

- Você não vai dizer nada? Me chamou pra me olhar?
- Talvez.
- Hm - um momento de silêncio - Você não me respondeu. Quem é você hoje?
- Não faço idéia. Entrei nesse corpo e a carteira de motorista diz Eric.

Ela começou a se interessar.

- Desde quando está nesse corpo?
- Desde que morri, como disse antes, em Viçosa.
- E como é o lado de dentro?
- Como sempre é pra todos nós. Vazio.

A sombra de um sorriso passou pelo rosto dela. A sombra mais bela que já vislumbrei na vida.

- Você sabe, nada mudou. Ainda te odeio - Ela tentou fazer uma careta e cruzar os braços.
- Eu sei, mas quero te dizer porque te chamei aqui.

Ela se esqueceu da careta e dos braços cruzados. Mexeu nos cabelos ligeiramente, quando um lápis surgiu entre eles - estava lá como prendedor. Tirou um bloco de notas de uma bolsa que eu ainda não tinha notado. Moanin' começou a tocar no ambiente antes que eu lhe dissesse tudo.

- Você sabe, nunca quis machucar ninguém.
- Claro - um toque de ironia pairava em sua voz.
- Eu amei você. Eu, na verdade, amei todas vocês. Cada som, cada voz, cada jeito, e cada maneira foram tão especiais e interessantes que guardei todos os detalhes. De certa forma, isso é cruel, mas foi a única maneira..
- Única maneira?
- Sim, de lembrar quem eu sou.
- Não faz sentido.
- Eu não consigo lembrar mais quem sou.

Ela se afastou um pouco da mesa antes de dar gargalhadas bem sonoras e só parou com lágrimas nos olhos. Os olhares pelo Pub se divertiram com a risada dela. "Quem não se divertiria", pensei.

- Blue Train... é a minha favorita - comentei.
- Vou embora.
- Tudo bem.
- Isso era tudo?

Olhei novamente pra ela por uns segundos... Nossos olhos se encontraram.

- Queria ter mais tempo.
- Você sempre teve tempo, você que nunca quis.
- Posso te dar minha alma?

Ela posicionou o lápis acima do bloco de notas, pronta para escrever.

- Obrigado - Ela disse após anotar e se levantou.

Blue Train começou a tocar.

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