História Experimental: Um demônio nos portões do Céu

Muitos povos idolatram o céu como algo a ser alcançado, muitos têm mitologias para dizer onde ele está. Mas apenas seres etéreos sentem sua presença quando cai a chuva pesada, aquela em que os mundos e seus tecidos se chocam. Poucos e menos ainda sabem, que quando o mundo etéreo e a realidade se chocam, os raios mostram onde milhares desses universos acabaram de colidir. Dessa colisão algum Universo pode nascer, enquanto outros podem deixar de existir. Mas isso é uma outra história.

Para chegar no céu, muitos poemas foram escritos, poemas esquecidos na cultura de povos antigos que sequer o pó existe mais. Algumas músicas foram tecidas a partir de melodias quase comparadas à mantras. Porém, alguns seres parecem ainda conter em seu sangue um pouco da sabedoria antiga.

"There's a lady who's sure all that glitters is gold
And she's buying the stairway to heaven
And when she gets there she knows
If the stores are all closed
With a word she can get what she came for
Oh, and she's buying the stairway to heaven[...]"

Stairway to Heaven - Led Zeppelin

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Era o som de um trovão. Rasgava o céu em todas as direções. Cada vez mais alto, cada vez mais forte. As nuvens estavam densas ao redor cercando o local, como se se juntassem para assistir o que acontecia. O ar estava cheio de gotículas de água suspensas, uma névoa espessa cercava os portões e se condensava em seu metal frio, fazendo finos fios de água escorrerem a partir dessa condensação. Os fios de água aumentavam e se somavam devido à chuva intensa, que parecia querer mergulhar todo o local em água. O portão parecia chorar. As lágrimas iam em todas as direções após saírem do local, se uniam em alguns sumidouros e dali formavam todos os rios que corriam nos Multiversos. Mas nesse momento, os rios levavam uma cor escarlate. A cada urro e cada batida, água avermelhada era atirada para todo lado. Quando a criatura gritava, seu rugido ecoava por todos os Universos. Cada batida no portão, um trovão se erguia no céu. Cada golpe, uma descarga elétrica percorria seu corpo. 

Essa é a breve história de Grukker Higarr, o demônio que esmurrava os Portões do Céu.

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Grukker soltava toda sua raiva nos portões. Porém, eles mal eram amassados. Eram portões com uma tonalidade metálica dourada e de tamanhos gigantescos, estendiam-se para cima muito além da visão. Pareciam estar lacrados em si mesmos, como se fossem um só metal, mas uma linha tênue em seu centro marcava o lugar onde se abriam. Não haviam muros fixos ao portão, sua base estava apenas levemente pousada em uma nuvem.

A mão do demônio estava encharcada de sangue. As batidas no portão faziam barulho além dos trovões: A mão dele se quebrava e os ossos trocavam de posição por baixo da epiderme, com alguns saindo para fora da pele avermelhada. O sangue escorria com a chuva intensa, inundava a nuvem abaixo que dava suporte ao local, tornando-a avermelhada. Seus urros eram cada vez mais altos, um misto de raiva e dor que era tão grave e profundo como um grito de peito aberto. Seu corpo era grande e truculento com a aparência de um grande mastodonte com os chifres quebrados saindo de ambas as laterais de sua cabeça. Um dos braços havia sido arrancado e "substituído" por um pedaço grotescamente cortado e afiado de metal escurecido e enferrujado. Esse metal estava enfiado em seu ombro e era banhado constantemente pelo sangue que jorrava do lugar onde a ferida supurava. Seus braços eram grandes e musculosos, com veias saltando de sua pele. Seu rosto era deformado. Talvez pela dor enorme que seu corpo com certeza sentia, talvez pelas milhares de torturas que o Inferno o fez passar. Não havia cabelo, o fogo e calor do Inferno nunca deixavam eles crescerem. Sua testa tinha a marca que o condenava como um ser abismal. E seus olhos... estes eram um poço de dor e fúria em pupilas vermelho-sangue sobre azul-escuro.

Grukker a cada batida deslocava o metal preso em seu ombro um pouco para fora. Usava o corpo para conseguir batê-lo no portão com a maior força possível. Enquanto sua mão parecia levar mais danos que o portão, o ombro dele já estava completamente destroçado e pouco apoio havia ali. Então, ele usou sua mão para remover o metal enfiado no ombro, e segurou-o firmemente perfurando sua própria mão destroçada. Como se nova força o invadisse, iniciou com ainda mais força a tentativa de destruição do portão usando o metal. Batia cada vez mais forte, cada vez mais insistentemente. O portão não tinha nenhum arranhão.

Não se sabe quantos éons se passaram, mas Grukker percebeu que havia feito um arranhão no portão enquanto martelava-o com o metal. Era pequeno, menor que seu polegar, mas aquilo invadiu-o de tal forma que sua raiva o fez urrar. Ela estava lá. ele sentia.

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Grukker havia agora aberto um buraco no portão, grande o suficiente para passar um alfinete. Então, ele pôde ouvir uma voz que atravessou o pequeno buraco:

- Papai? Eu estou bem, não precisa me buscar. Um moço mal me buscou na escola, mas um anjo foi me buscar na casa do moço mal.

Grukker havia muito perdido sua língua e seus dentes, era o presente de boas-vindas para quem chegasse ao Inferno. Seus olhos antes vermelhos de fúria, tiveram um momento de incerteza, eles se encheram de lágrimas de sangue que evaporaram ao encontrar sua pele.

Por um momento vacilou. Mas sua fúria era maior. Recomeçou a esmurrar o portão ainda mais forte do que antes, tornando aquele pequeno buraco em um grande espaço onde ele pudesse passar.

Quando o buraco era grande o suficiente, a chuva era tão densa que nada se via à diante. Deu alguns passos para frente, através do portão e seus pés queimaram como se pisasse em pleno sol: era terreno sagrado. Os cabelos loiros dela estavam um pouco distantes, ele a via ao lado de um homem em uma colina distante. O homem estava ajoelhado próximo à ela, e sussurrava algo em seu ouvido. Ela o olhava sorridente, acenando um "sim" à tudo que o homem a dizia. Em seguida, o homem se levantou e Grukker o perdeu de vista, como se nunca tivesse estado lá.

Qual era o nome da pequena? Ele não conseguia lembrar. Ela correu em sua direção e o olhou em seus olhos.

- Papai, o senhor pode me dar sua mão?

Grukker olhou para a própria mão, estava destroçada, não se sabia onde estavam os dedos, e os ossos por baixo haviam trocado de lugar tantas vezes que não havia um jeito de segurar ali.

- Tudo bem papai, confie em mim.

Grukker ofereceu sua mão à ela e quando ela segurou, ele se lembrou de como era. A sensação de carinho, de proteção. Qual era mesmo o nome dele? Ele, quando homem, nunca sabia se era ele quem protegia a filha ou a filha que o protegia. Aquelas mãos dadas eram tudo. Ele não olhou para ver o que tinha acontecido, mas sentia as mãos deles unidas.

- Papai, o moço disse que tenho que te levar pra um lugar fora daqui.

Os olhos do demônio se iraram e começaram a procurar ao redor.

- Não Papai, o moço mal que me pegou na escola não está aqui.

Ele não entendia. Se o monstro que ele buscava não estava no Inferno, depois de tantos anos procurando, e agora não estava no Céu. Onde ele estava? Como se a pequena lesse seus olhos, ela disse:

- Também não sei, ele não está aqui.

A vingança aflorava o peito e enchia a mente. Pura raiva escoava de sua boca, seu urro de fúria foi ensurdecedor. Ela soltou a mão dele para tapar os ouvidos. E então, tudo ficou vermelho.

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Quando Grukker recuperou um pouco de si, ele notou o que havia feito. Partes de carne apodrecidas estavam espalhadas por todas aquelas colinas próximas ao portão. O sangue inocente banhava as colinas do Céu.

Então ele se lembrou.

Hellen.














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