Um Homem Sem Fé

Existem momentos que são fundamentais na formação do ser que somos. Tais momentos acontecem todos os dias, não apenas na infância, basta uma ação e tudo pode mudar. Mas porque a mudança às vezes parece impossível? Refletindo sobre essa mudança, é possível se aprofundar no seu passado, procurar algo que preencha a razão de uma determinada característica do ser.

A característica que procuro hoje, é porque não tenho fé. Sei que não nasci sem fé, pois quando era criança, uma das coisas que eu mais fazia sem cessar era orar, e não uma simples oração, mas de "peito aberto" com toda a alma que algum dia eu perdi. Me pergunto se os traumas me fizeram perdê-la, ou se foram os sorrisos que fui forçado a dar quando tudo o que tinha para fazer era chorar. Me pergunto se foram as tantas vezes que me forçaram a ficar parado, quando tudo o que eu gostaria de fazer é me libertar, enlouquecer, me descontrolar.

Em meio a tantos auto-questionamentos, reconstituo uma memória. Não é uma simples memória.

A memória se inicia quando eu era pequeno - não que eu seja muito alto agora - eu deveria ter entre 4 e 6 anos. Me lembro de estar na cozinha, um cômodo grande com o chão de mármore escuro lustrado com paredes e teto brancos. Existia uma bancada de mármore negro em uma das paredes que terminava em um fogão velho, mas muito útil. Na parede adjacente à essa, ficavam os armários e uma geladeira marrom que não gelava direito as coisas. Em frente aos armários, encostada em outra parede estava a mesa de jantar em que existia um pequeno espaço entre o armário da cozinha e a mesa de jantar. Além disso, o espaço restante da cozinha era vazio, o que dava acesso livre para as duas portas que levavam o acesso até lá: a porta da sala de estar e a porta da área de serviço.

Eu estava no espaço entre a mesa de jantar e o armário, olhava para cima, onde se encontrava o meu pai que estava vestido de terno para cinegrafar mais um casamento. Ele gritava palavras para mim, enquanto minha mãe estava sentada na mesa de jantar olhando para mim com uma cara de reprovação. Nessa época eu era filho único, e eu nunca senti o quanto estava só como naquele momento. Meu pai perguntava "ONDE ESTÁ A CHAVE? EU PRECISO SAIR AGORA! ESTOU ATRASADO!" para minha mãe, que gritou "A CHAVE ESTÁ COM ELE, NÃO SEI ONDE ESTÁ" apontando para mim. Então meu pai perguntou onde estava a chave pra mim "ME FALE ONDE ESTÁ A CHAVE AGORA, ME DÁ A CHAVE SE NÃO EU VOU TE DAR UMA SURRA, EU VOU TE BATER!" eu chorava porque não sabia o que estava acontecendo. Chorava, me sentia solitário e triste, eu não sabia onde estava a chave, nem sequer entendia porque eles estavam gritando comigo. Senti os olhos esbugalhados do meu pai me olharem e havia ódio neles, ódio pelo seu filho que não sabia porque seu pai o odiava, não entendia porque sua mãe não o protegia, buscava proteção olhando para a mãe e tentava fugir dali, de alguma forma, por algum lugar. Meu pai puxava as gavetas do armário com violência, quase acertando em mim em algumas puxadas, querendo saber onde está a chave. Então minha memória explode em um surto de violência, gritos e choros.

Lembro do meu pai me pegando com força, machucando minha pele e me batendo com toda a sua força, perguntando onde estava a chave, eu não sabia responder, apenas chorava e gritava que não sabia onde estava. Nem sequer imaginava. Minha mãe não tentou me proteger, apenas assistiu. Depois de um tempo, meu pai me soltou, eu estava cheio de lágrimas e machucado. Meu pai e minha mãe me mandaram pro meu quarto. Eu fui.

Subi as escadas e entrei no meu quarto. Nele, havia um baú de madeira, que meu avô havia feito para guardar cochas e edredons. Eu fui mancando até ele, entrei no baú, não sei se em parte buscando a proteção do meu avô ou só para me esconder, mas foi lá que eu fiz a oração que eu me lembro até hoje. Me encolhi em posição fetal, chorando e machucado, e uni minhas mãos para fazer uma oração. Então comecei minha oração: "Senhor Deus, obrigado por tudo, senhor, eu preciso da sua ajuda agora, meu pai me bateu e eu não sei porque, minha mãe me abandonou e eu não consigo entender, mas se eu sou tão ruim senhor, se eu sou tão mal que escondo as chaves do meu pai e tão mal que não mereço o amor de minha mãe, me tira desse mundo porque eu não mereço viver. Me tira essa dor profunda que tenho no peito, como se nada mais importasse, essa dor profunda de solidão que enche meu coração. Por favor senhor, tira minha vida, TIRA, TIRA ELA DE MIM SENHOR, POR FAVOR, NÃO TENHO MAIS MOTIVOS PARA VIVER, POR FAVOR... POR FAVOR" enquanto eu dizia essas palavras, muitas lágrimas saíam dos meus olhos e eu não conseguia parar de chorar. Tentei prender minha respiração, mas não consegui, tentei me machucar, não consegui. Eu acabei dormindo, dormindo da dor que é viver.

Meu pedido não foi realizado. Minha fé, não foi o bastante, nunca seria. Não me senti sendo aparado aquela noite. O sono é apenas um modo da mente se desligar de toda a dor que sente. Depois daquela noite eu entendi que estamos todos sozinhos.

Não importa o quão nossa família nos ame, o quanto seus próximos se importem com você ou seus amigos irem até você e rirem de coisas que vocês conversam todos os dias. Somos todos órfãos. Abandonados para viver.

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