História Experimental: Sentidos

Você está sentada, me olhando. Estamos nesse restaurante universitário, vulgo "bandejão". Ocorre uma luta, onde tenta se revesar entre olhar pros meus olhos e olhar pro prato que está a sua frente. A comida tem sabor de sal na sua língua, tanto sal que a cada garfada, pegas o copo de suco e concede a si mesma uma pequena tragada, procurando naquela água com açúcar, o doce que vai amenizar um pouco da salinização da vida.

Eu mendigo um olhar teu. Meus olhos vagueiam pelo seu rosto e pelos seus ombros que ficam parados, enquanto sua cabeça chega alguns milímetros mais perto. Me provocas. Busco teus olhos, como um viciado procura um cigarro toda vez que fica ansioso, mas eu não preciso de ansiedade para buscar meu vício.

Arrasto minha mão por cima da mesa, até tocar na sua. Você deixa sua mão perto da minha durante algum tempo, mas não é possível que almoce sem usar o garfo. Sinto a textura leve e morna da tua pele se descolar da minha. Sensação a sensação, segundo a segundo, o calor que tua mão fornece à minha vai indo embora. Parece durar eternamente, mas na verdade acaba tão rápido que você já pegou o metal frio do garfo, encheu com mais arroz e engoliu.

Eu ainda estou te olhando. Seu rosto está cheio de manchas brancas de protetor solar (mal)espalhados pela sua pele facial, característica daqueles que estudam Medicina, sempre com pressa. Acho que você reparou agora, que eu estou te olhando fixamente já faz algum tempo, sem piscar. Meus olhos estão entreabertos e você decide entre o prato ou eu. Olha nos meus olhos. Entretanto, você não lê meu olhar como se faz com um livro comum, logo o prato está mais interessante. "Não há como ler algo infinito", eu "humildemente" penso. Eu leio o seu olhar. Esses olhos de cigana oblíqua e dissimulada, praticamente Capitu, e me pergunto: O que há nessa alma?

Imagino se algum dia separarem a alma do corpo, caso ela realmente exista. Imagino uma bola azul translúcida controlando vários impulsos elétricos cerebrais, controlando um corpo. Um invólucro para algo maior. Quem é você? Olho nos seus olhos e vejo que estou errado, não há como ler o infinito, não há como ler seus olhos

Nós nos levantamos, pegamos nossas bandejas da mesa, com os pratos sujos e nos direcionamos ao lugar de entregá-los na cozinha. Quando passo por você, sinto seu perfume doce e suave como o aroma cruel de viagens à cachoeiras, acampamentos no meio da mata e de castelos de areia na praia se desfazendo ao vento.

Estamos ao lado de fora do restaurante, eu te abraço. Ouço você dizer pela décima terceira vez que me ama. Eu acredito como um tolo cego. E agora? Tudo parece tão fascinante, o céu aqui fora está nublado, o vento sopra entre seus cabelos e desiste de mover os meus. O que faremos?

Olho pra você mais uma vez antes de decidir. Talvez eu consiga sentir. Talvez. Dizem que só se sente com o peito, com a alma. Talvez eu sinta um pouco da sua alma, mas não tenho certeza. Talvez eu devesse alertá-la? Não. Ela vai acabar descobrindo mais cedo ou mais tarde. Eu não sei sentir tão bem.

Eu perdi minha alma.

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O céu retumba ao nosso redor. As nuvens se afastam com velocidade e algumas se dissipam em pleno ar. De azul, o céu se torna extremamente branco e nossos olhos se fecham pela alta intensidade da luz. Quando abrimos os olhos, o céu está vermelho e há muita fuligem escorregando pelo ar até chegar ao chão. Os prédios próximos estão velhos, com ervas daninhas crescendo por todas as paredes. Então fecho os olhos e aperto os ouvidos com força, pois chega um zumbido ensurdecedor, como se ligassem uma caixa de som gigantesca e colocassem um mosquito pra voar perto de um microfone. Quando consigo abrir os olhos novamente...

...olho ao meu redor, todos dormem. E você? Onde você está? Está dormindo?

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