História Experimental: Tênue Sem Fim

Existem aqueles dias tão destrutivos e cansativos... Ao final deles, ouça o meu conselho, a melhor coisa que pode ser feita é dormir.

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Era uma manhã fria, o sol não havia nascido por enquanto, apenas seus raios pintavam um dos horizontes de azul claro sobre tela de azul escuro e estrelas. O céu estava repleto de nuvens muito finas que permitiam que a singela luz as perfurasse. Abaixo do céu, nos prédios cinzas, pequenas casas marrons e mesmo nas ruas, seres, que não sabiam se eram ou não eram, faziam suas tarefas matinais. Erguiam-se de suas camas, iam até os respectivos banheiros, tomavam seus respectivos banhos e alguns sentiam a água que caía nos ombros, na cabeça e terminava seu caminho pelo corpo até o chão do box do banheiro.

Terminando de acordar, Marcos saiu de seu banho para um banheiro completamente afundado em névoas brancas opacas. Não se podia ver em que parte do banheiro estava a porta por onde havia entrado nem onde estava sua toalha. Quanto tempo havia se passado embaixo do chuveiro? Não fazia a menor idéia. Talvez lá fora não existisse mais nada. Seria um milagre bem-vindo. Mas o sonho se desfez ao mesmo tempo que o vapor de água que cobria o cômodo. Passou a mão no rosto para remover o excesso de água e estendeu a mão para a toalha. Envolveu seu corpo nela e a outra mão encontrou a maçaneta. Demorou-se. E se ele nunca mais saísse daquele banheiro? Alguém realmente sentiria falta?

- ACORDA VAGABUNDO! - Um estrondo feito por algo pesado explodiu na porta e invadiu os ouvidos de Marcos. Ele demorou-se mais um pouco, até os passos do outro lado da porta se afastarem. Enfim saiu.

O mundo lá fora parecia o mesmo. Foi até seu quarto, dividido com seus dois irmãos "adotivos" menores que estavam dormindo, e vestiu sua roupa em silêncio. O que a camisa dizia? Psicologia, UFMG. Por um único momento, contemplou-se, vestido com aquela camisa. Alguns teriam raiva mas outros teriam apreço e confiança. E nisso, residia o motivo real de usar aquela camisa: para ele, era pra conseguir caronas para casa. Sempre facilitava.

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A Lua não havia ido embora ainda, quando ele chegou ao ponto de ônibus. Marcos erguia seu braço para sinalizar ao ônibus que ele queria subir, quando olhando para o céu, uma pequena luz surgiu em um ponto muito próximo à Lua. Talvez aquele fosse o sinal. 

Abaixou o braço e o motorista que dirigia na direção de seu ponto de ônibus, entendeu que ele havia desistido, passando direto em seguida. 

Pra onde iria? Se era o que ele estava esperando, não haviam muitos lugares seguros para onde ir.

Havia um. Marcos correu.

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Era uma praia com pouquíssima visibilidade do mar aberto. Pedras e caminhos de barro faziam com que fosse de difícil acesso para turistas também. Apenas os moradores da região, que viviam nas casas espalhadas com 10 km de distância, sabiam de sua existência. Ele a havia descoberto um ano antes... bom... Ela mostrou à ele.

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Era inverno em Paris. A neve preenchia os telhados das casas, as sacadas minúsculas e as ruas largas. Apenas um lugar estava sempre à salvo: O metrô. Confortavelmente quente. Não era Marcos que havia escolhido ir de metrô naquele dia. Na realidade, ele nem sequer havia escolhido nada. Alguém o havia sequestrado com um saco em sua cabeça, e pegado completamente o conteúdo da sua mochila como a bolsa de permanência na França que ele havia acabado de receber. 

Iriam matá-lo, mas como perceberam que era um estudante, apenas o soltaram em uma parte aleatória da cidade. Demorou a madrugada até algum estabelecimento, que pudesse orientá-lo, abrisse. E até o início da manhã para que as portas do metrô fossem abertas. A roupa de seu corpo estava suja e cheirando a porta-malas de carro, e mesmo assim, ela disse:
- Bom dia monsieur.

Não, não era possível que ela estivesse falando com ele.
- Você não vai responder? Esses garotos, cada vez menos educados.
- Me desculpe, mademoiselle. Como você sabe que eu falo português?

Ela sorriu e mostrou a língua.

Foi uma visão divina. Seus olhos eram de um castanho brilhante, quase fantástico. Seus cabelos negros iam até um pouco abaixo das orelhas e seu rosto tinha a composição perfeita para que tudo isso ficasse incrivelmente mortal. E a voz... havia sinceridade cruel naquela voz. Tão bela, tão cruel.

- Venha comigo - Ela disse.

Ele não disse nada, ela apenas pegou sua mão.

Foram dois anos. E depois, nada nunca mais pôde existir.

Ele sabia a verdade.

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Soprava levemente na praia, aquele vento. Era uma brisa mansa que fazia sorrir. As folhas das matérias da École estavam todas espalhadas pela areia. Ela dizia que era belo vê-las agitar-se. Ela dizia que pelo menos alguém ali, devia voar.

As folhas eram fáceis pra isso. Ela também. Ele era pedra.

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A ponto luminoso continuava a brilhar quando chegou ao ponto mais alto de seu bairro. Uma mata densa cobria a região, e não dava pra ver completamente o céu, mas era possível sentir o ponto no céu. Ele parecia refletir o peito. O ardor perpetuava-se nos músculos dos braços e dos ombros.

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"Me encontre no céu", ela disse.
"Porque eu nunca soube seu nome, nem você o meu?", ele disse.

Ela sorriu e soltou a mão dele. Ele foi até o portão de embarque e olhou para trás.
Ela ainda estava lá. E mostrou a língua, antes de se virar e sumir.

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Era isso. O ponto agora era uma rocha gigante que invadia a atmosfera.
Talvez ela fosse uma vidente.

Ou talvez...

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