A Destruição de Toda Esperança

- Escuta, olha, talvez você não entenda de primeira.
- O que você quer dizer?
- É, sabe, talvez não entenda minhas palavras assim que eu as fale.
- Como assim? Fala de uma vez!


Estávamos há horas tentando iniciar aquela conversa. Eu a busquei na casa dela, era noite e fazia frio. Ah, como fazia frio. Quando ela abriu a porta do carro, o vento despejou-se em uma lufada de congelamento misturado com o perfume dela. Era belo e era tão destrutivo. Aquele mesmo som de voz que por tantos anos eu sonhava e ouvia o constante martelar na minha mente: Cristiane, Cristiane, Cristiane. Tão impulsivo, tão caótico. Meus olhos se enchiam e se enchem de água ao rememorar.



- Eu não posso negar nada. Tudo eu fiz foi por puro e simples egoísmo. Tudo.

- Tudo? Até as cartas, os olhares, o chá e o café?
- Não, não, nem tudo.
- Mas você acabou de dizer que foi tudo!
- Não, perdão, eu faço isso frequentemente. Eu digo algo como uma verdade eterna, mas no próximo momento, aquilo não é eterno e nem é verdade. Acho que não é tão minha culpa assim, quando eu disse aquela frase há alguns segundos atrás era outra situa..
- Não quero ouvir isso. Só diz porque você veio até Contagem e disse que era urgente. Vai fugir de novo? Que dózinha de você.


Era doce sua voz. Eram amargas suas palavras. Cuspia amargura nos meus olhos e na minha boca e eu engolia sem perceber. Ela estava especialmente quebradora de almas naquela noite. Seus cabelos estavam molhados, como sempre estavam quando saíam de um banho. Seus olhos estavam tão castanhos quanto sempre estiveram... Aquele tom de castanho que sempre me fez chamá-la de linda. E chamava o tempo todo. Todo instante. Ah, que grande droga estou fazendo, todas depois eu também chamei de linda e a Andressa antes. Vai ver eu não sou tão criativo assim afinal. Não havia muitos apelidos novos pra inventar. Já tinha utilizado Anjinha, Amor, Paixão, Meu Bem e Linda vezes demais com a Andressa. Tudo depois era uma espécie de repetição doentia...



- Você vai ficar me olhando com essa cara de cú Eric?

- Perdão, eu viajo às vezes.
- Às vezes? Você viaja o tempo todo. Eu nunca vou entender como fiquei com você.
- Eu também não.
- Hahahaha... Que dó de você. Agora diz logo.
- Bom, por onde eu começo?


Por onde eu começo pra que você me ame novamente? Por onde eu começo pra poder ter mais uma chance de viver ao seu lado?



- Não sei, você que quer falar. Fale.

- Tudo bem. Eu não sei, bem, eu agi em parte por impulso, em parte por meu coração. Eu sinto aqui dentro uma vontade louca de sempre te ver e ver se está bem. Ou pelo menos, eu sinto uma vontade maluca de participar um pouco dessa parte que se chama "fazer você bem" ou pelo menos, numa versão menos possessiva, "bem ao seu lado estar e você estar bem". Eu não sei porque exatamente, talvez seja como meu psicólogo falou, eu seja apenas uma aberração possessiva que não queira deixar você ir. Ficar sempre puxando e voltando à sua memória me traga algo que eu não tenho na minha vida atual. Talvez certa paz que eu nunca mais encontrei depois que você partiu. Eu não sei, eu realmente não sei. Eu só estou perdido e só, e pensei que talvez se eu viesse até aqui e realmente me abrisse pra você, algo mudaria, não sei, isso é uma coisa sem sentido, eu sei. Eu só pensei que se eu realmente me abrisse você veria algo em você que ainda existe, ou que não esteja tão enterrado que não seja mais possível recuperar. Algo que pudesse fazer você deixar de usar essa franja que cobre parcialmente seu olho direito. Algo que trouxesse você novamente não pra mim, mas pra vida. Algo que mudasse o que seus olhos conseguem ver. Sabe? Quando se chega em uma praça ou um lugar público com diversas pessoas? Dependendo de como você está (seu humor, personalidade e ambições) você repara em diferentes coisas. Se um cara quer transar, ele vai reparar nas mulheres mais "gostosas" dali, as que ele teria mais prazer, nesse caso. Se um cara está com saudade da namorada, ele vai reparar em casais de namorados na praça. A mesma coisa acontece quand/
- Escuta, eu não sei onde você quer chegar, para de enrolar Eric, fala de uma vez.
- Eu te amo.
- O que? Você está doido? Vai a merda.
- Não. Eu não estou doido. Eu só sinto isso hoje como eu nunca senti. Eu entendo o que o amor é, muito melhor do que eu entendia antes. E ainda mais, eu aceito o que ele venha a ser. Eu respeito qualquer coisa que ele venha a se tornar.
- Você está doente. Eu vou embora. Eu estou construindo algo legal, não faz o menor sentido continuar aqui. Meu namorado agora é meu noivo e tem uma filha, e daqui a 8 meses vai nascer a nossa filha.
- ... a nossa filha?
- Eric, eu estou grávida. Meus pais não sabem ainda. Mas fique feliz por mim, se você puder. Eu estou feliz.
- É isso que você quer?
- Sim. Tchau Eric. Boa noite.


A porta do carro se abre de alguma forma que eu não vejo. Minha visão está embaçada. Sinto os primeiros traços de água percorrerem meu rosto. Minha visão continua embaçada. Elas não param de cair. Um borrão que estava ao meu lado agora está do lado de fora e o frio entra mais uma vez. O borrão se abaixa bem pouco para me olhar nos olhos a partir do lado de fora do carro, afinal, ela é baixinha... e tão linda. Vejo algo parecido com um sorriso no borrão.



- Olha só. Você sente.



A porta do carro se fecha. O mundo soa um silêncio gritante, como um altíssimo zumbido que está em tudo, afastando-me cada vez mais do mundo real. Sinto as camadas se fecharem novamente. A alma começa a ser envolvida por uma camada de sorrisos falsos, a seguir por uma camada de expressões comuns do dia-a-dia. A próxima camada de modos de comportamento padrões, como parecer uma boa pessoa, como manter sua voz firme, calma e gentil, como sorrir com os olhos, como esconder a obsessão, a pressa. E a última camada e mais superficial: Como parecer misterioso. Embrulho a parte interna com um plástico Ziploc e escondo no âmago amargo. A blusa está cheia de lágrimas secas e salgadas agora.



Ligo o carro, acelero, saio da frente do prédio dela... Aquele prédio, aquela portaria e aquelas memórias de cada despedida. Os olhos, olhares e verdades. Quão idiota eu era. Tentava ser real sem ser. Viro à direita, passo em frente ao Big Shopping e acelero. Foda-se os radares, eu apenas quero chegar em casa.



São quatro da manhã. Eu entro na via expressa à 150 km/h saindo de Contagem com a esperança de que o mundo vai acabar. Pelo menos o meu mundo. Que acabe. Que droga.



Ele não acaba. Eu chego em casa em menos de 5 minutos. Deito na minha cama, tranco a porta do meu quarto e abro as janelas. Nunca senti tanto frio em Belo Horizonte. Tiro completamente minha roupa e deixo a luz da lua entrar no quarto. Ela esfria tudo, os cobertores, meu peito, minhas pernas e partes íntimas. Ela congela meus ossos. A ponta do meu nariz, gelada.



Eu estou pouco me fodendo. Estou pouco ligando. Não importo quem irá ler esse texto, quem não irá. Eu só quero parar de ser um grande babaca politicamente correto, eu quero abrir esse Ziploc de alma e retirar cada camada de falsidade com que protegi minha alma. Eu quero que o frio dessa noite entre na minha alma. Eu quero sentí-lo através da minha carne. Através de tudo o que me é permitido sentir. Ouço os barulhos da cidade, esses malditos sons. Esses cachorros que nunca param de latir, o alarme do motociclista que supostamente vigia o bairro, o barulho da merda da televisão ligada nesse domingo à noite. Que barulho emburrecedor.



Eu sinto uma vontade irresistível de pular. São cerca de 8 metros de altura. É só pular Eric. O tempo todo passará de uma só vez. Se a religião da sua família estiver certa, o esquema é simples: Sua alma vai pro inferno/É apagada para sempre como se nunca tivesse existido. Você acorda na segunda vinda de /Jesus/ quando "a grandiosidade de /Deus/ vai ressuscitar todos os mortos da Terra (vide Apocalipse)" e vê que grande merda virou o mundo. Caso estiverem errados, é mais simples ainda. É só o fim de todos esses conflitos gigantes que surgiram quando você nasceu nesse mundo de conflitos.



Pessoas mais inteligente que outras, pessoas mais "legais" que outras, pessoas com mais chances que outras, pessoas mais bonitas que outras, pessoas mais egoístas que outras, pessoas que ganham mais que outras e são mais privilegiadas que outras. Pessoas que nascem em berços de ouro e pessoas que nascem em berços de merda. E pessoas como você, que nasceram no meio. Entre a merda e o ouro, mas que são grandes merdas afinal.



Ah, esse maldito texto e a destruição de toda esperança. Eu tive uma professora de Português na quinta e sexta série que me traumatizou muito em diversos sentidos, mas ela dizia sempre que o título do texto só é dado depois que você vê pra onde ele vai. E é exatamente isso.... A destruição de toda esperança.



Porque publicar um texto assim? Porque não publicar? O quanto você está livre pra ouvir? Quantas verdades você realmente quer escutar? Eu devo esconder meus sentimentos para que eles não te incomodem? Engraçado.



E belo. Belo.



Eu só queria chorar. Mas há tanto tempo não choro. Eu só queria conseguir expulsar os demônios que dominam minha alma. Eu escrevo e eles nunca saem.



Eles só sorriem.

Comentários

  1. Eu me vi em tantas partes desse texto que, lendo em voz alta, peguei-me pensando que talvez alguém sinta as coisas um pouco parecido como eu o faço.
    Não desista. Seja sua própria muralha!

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