Queria que tivessem me dito isso no começo do intercâmbio


Hoje uma pessoa no trabalho me disse que ela não pode contar com meu julgamento porque ele não é objetivo.
 

Atualmente, estou fazendo meu estagio em Lyon. Foi uma das poucas oportunidades de trabalhar com engenharia de dentro da empresa - no escritório - ao invés de trabalhar no canteiro de obras. Foi também a primeira oportunidade de observar o ambiente corporativo francês. O modo como as pessoas se comportam, sobre o que elas falam, como elas se vestem e quais características são louvadas e quais são execradas.

Ainda não tinha trabalhado em escritório estando na área da construção e algumas das minhas experiências anteriores na França para compensar a falta de bolsa de estudos - o que afetou bastante meu desempenho escolar - haviam sido :
  • Como garçom
O Hotel/Restaurante era luxuoso então recebia pessoas do mundo inteiro que passavam por Paris. Encontrei produtores brasileiros de café tentando vender café na França (aparentemente apenas 2-3 pessoas vendem o café brasileiro em toda Europa, se você tenta não passar por essas pessoas, você é boicotado), alemães que trabalhavam nas grandes corporações de direito europeu, artistas que trabalhavam na Paris Fashion Week, americanos de todas as partes dos EUA - inclusive me perguntaram se fazíamos hambúrguer, o que deixou o chefe do restaurante extremamente nervoso.
Eu era o único garçom/caixa/assistente de cozinha/bartender/faxineiro nos fins de semana, posso te confessar que em relação aos preços dos pratos, eu pagava meu salario em um dia de trabalho. Porém meu contato era em grande maioria com turistas, pessoas que estavam felizes por estarem ali. Não havia contato com a gerência do restaurante nem com o grupo que gerenciava o empreendimento.
  • Como freelancer em informática
Aparentemente é uma realidade tanto no Brasil quanto na França: as pessoas que trabalham com informática são exploradas. Nunca recebi tão pouco pelo tanto que fazia. Encontrei pessoas de todos os tipos e nacionalidades, entrei nos escritórios de La Défense com a vista sobre a Fundação Louis Vuitton e mais ao fundo sobre a torre Eiffel para instalar computadores estando com fome e com frio durante um dia inteiro.
O problema não era o trabalho, trabalhar nunca é um problema. O problema principal era a falta de dignidade de condições ideais de trabalho. Um padrão muito interessante era que os estrangeiros eram empregados com contratos de curta duração (Mini-CDDs) e os franceses conseguiam contratos de longa duração (CDI).
  • Como estagiário de Engenharia Civil em um canteiro de obras
Embora tenha sido uma experiência extremamente dura e em certos momentos traumatizante, foi minha primeira experiência direta com engenharia civil. Eu não tive contato com muitas pessoas nem estava inserido no ambiente de trabalho da empresa que eu fazia parte. Dentro do canteiro existia uma relação de suserania e vassalagem, uma hierarquia infelizmente necessária mas não menos excruciante. A parte mais interessante foi ouvir a experiência dos pedreiros, dos artesãos e das pessoas que faziam parte do verdadeiro trabalho do canteiro, de produzir diretamente aquele edifício. O canteiro é um ambiente multicultural. Eu falava mais português do que francês durante meu estágio. Logo não havia contato com a tal da cultura corporativista francesa.
Esse estágio como Engenheiro de Métodos (Ingénierie Méthodes) em Lyon foi a primeira oportunidade fora da Escola de Engenharia de entender como a engenharia funciona fora do canteiro, ou de uma maneira mais generalista, como são certas relações de negócios na França. Estando nesse novo ambiente, pude comparar como ele reflete ou deflete em relação aos ambientes anteriores.

Mesmo que tenhamos reflexões relevantes internamente - diga nos comentários abaixo se você concorda - sinto que nunca fui estimulado à compartilhá-las no Brasil. Sempre que não gostava de algo, era melhor dizer que estava bom pra não “ofender” a pessoa do que dizer a verdade - mesmo que de modo construtivo. Lembro inclusive de situações na vida no trabalho que se opor à hierarquia presente era visto como um desafio. Tanto na sala de aula quanto no trabalho existem relações hierárquicas muito fortes onde os chefes e os professores são criaturas a serem "adoradas".

Essas experiências moldaram meu comportamento, mesmo que em algumas famílias essa abordagem seja diferente, senti que na cultura francesa observei o incentivo contrário na grande maioria dos casos.

Desde pequenos as opiniões das crianças são ouvidas e incentivadas assim como postas em cheque. As crianças participam ativamente dos assuntos em pauta na mesa de um almoço de domingo. Uma opinião generalista como “isso é interessante” ou “isso é importante” é compreendida como inocente e fútil, então as crianças são incentivadas a dar respostas bem argumentadas e completas. 

E faz todo sentido. Uma frase como "isso é interesante" é relativamente normal mas nela falta precisão como : O que é importante exatamente? Qual é o objeto da conversa? Se estivermos falando sobre direitos humanos, qual aspecto dos direitos humanos é importante ? Em quais situações você está pensando precisamente quando faz sua consideração ? Essas situações são realmente regras ou são exceções ?

Existe uma certa genialidade em falar a verdade usando a retórica que é louvada na França. A eloquência é tida como a característica última das pessoas inteligentes. Escrevi isso no meu outro texto aqui. Talvez seja por isso que o RAP francês está tanto em voga. Para essa pessoa no meu trabalho em Lyon, eu não emitia opiniões suficientemente exatas. Mas pra quê dar uma opinião com um encadeamento lógico perfeito em um assunto que desconheço? Só pra parecer "genial"?

Eu diria até mais... em outras situações como no estágio no canteiro de obras, esse julgamentos objetivos passeavam bem próximos ao desrespeito.

Finalmente, em que situações nesses últimos dois anos uma adaptação foi necessária? Como discernir onde está uma frase "bien tourné" nessa linha entre o desrespeito e a "genialidade" ?

Um dos meus maiores receios desses dois anos foi ser mal compreendido. Falando uma língua que não era a minha, perdendo milhares de nuances culturais todos os dias e pisando em ovos a cada contato. Mas sabe, e daí? Mesmo se a gente cometer uns erros aqui e outros ali, somos capazes de aprender apenas no momento em que nos lançamos. 

Não tem problema você ultrapassar a linha, é até importante que você a ultrapasse correndo o risco de errar. 

Se você observar que a reação não foi das melhores, se você esforçou para se fazer entender e não deu certo, a melhor dica que eu posso te dar é muito simples :

Peça desculpas. Mas não tenha medo de errar.

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