Tempo de Cair as Folhas
Terra, dia 13 de novembro, ano 2019, 16 horas e 30 minutos. Esta é a nossa localização atual; aqui estamos, aqui somos, junto de
outros 7,7 bilhões de pessoas no mundo, das mais diversas áureas, culturas e
histórias. Somo s seres de carbono, espalhados por todos os cantos do nosso
globo, cada um com suas rotinas e com suas vidas, tenham elas um propósito ou
não. O carbono nos unifica enquanto espécie, está no nosso DNA e nos reduz a matéria.
É mutável, dinâmico, perecível. Mas além dele, existe também um outro elemento
ao qual estamos todos submetidos enquanto seres, e que nos dá não a estrutura
material, mas sim a potência de ser. Este elemento é o tempo.
O tempo é inerente e paradoxal, pois
é abstrato mas deixa suas marcas com concretude; é intocável mas pode ser
escrito em uma equação quântica. Passa por todos, mas ninguém pode passar além
dele; ele pode trazer ansiedade mas também pode curar. Em meio aos seus
paradoxos, o tempo escorre entre nossas inspirações e expirações, entre nossas
sístoles e diástoles. Desde o nosso nascimento, a nossa existência começa a ser
registrada por dígitos temporais, e, assim, crescemos, medindo nossos anos,
nossos aniversários, nosso pulso, nossas incursões respiratórias, tudo na
unidade do tempo, e, muitas vezes, nem ao menos percebemos.
Há 3 anos atrás, eu recebi um presente,
mas não tinha ideia de que ele me traria uma reflexiva experiência sobre o
tempo. Eu estava prestes a me mudar de estado e alguns dos meus amigos se
uniram para me dar este presente. Eles queriam que eu levasse algo em nome de
todos, e que pudesse ser símbolo da nossa amizade. Quando me entregaram a
surpresa, fiquei muito feliz, embora ainda não sabia a história por trás dela.
Recebi, então, um pequeno vaso, contendo um Bonsai. Em sua história, o bonsai é
uma planta de origem japonesa, cuja técnica de cultivo foi inspirada nas
árvores de bandeja chinesas, por volta de 700 a.C.. No seu cultivo, estas
árvores eram coletadas e colocadas em vasos mais antigos, para serem modeladas
e retorcidas como as da selva. Segundo a cultura da época, elas eram árvores sagradas,
porque as suas curvaturas particulares permitiam a recirculação dos fluidos
vitais e da seiva, e isso levaria a uma longa vida para estas plantas.
Após recebe-lo, eu trouxe, então, o meu presente junto comigo. Sempre
que eu viajava, o levava nas viagens, cuidava dele todos os dias, com água,
poda e sombra. Vi minha planta crescer por todos estes 3 anos em que dela
cuidei, e o fiz com muito carinho, pois não era uma planta qualquer, mas sim a
representação de uma história de amizade. Meus amigos haviam me dito que, mesmo
á distância, esta amizade não poderia morrer, e, por isso, eu deveria
cultivá-la todos os dias, assim como aquele bonsai, e que enquanto ele
estivesse vivo, assim estaria a nossa amizade. Esta representação até pode ser bonita,
mas embute um compromisso de responsabilidade em seu interior. Cuidar de uma
planta, que, aliás, também é um ser vivo de carbono, pode ser como cuidar de
uma pessoa, e se ela não receber seus cuidados vitais todos os dias, aos
poucos, definhará.
Há algumas semanas atrás, eu passei em
frente ao meu bonsai, que fica sempre em seu cantinho, no ambiente úmido e
sombreado. Mas quando olhei para ele, tive uma reação de surpresa. Não havia
flores, folhas, tampouco havia galhos, sendo que os que restaram estavam secos,
tombados e sem expressão de vida. Pensei “como isso aconteceu? Como ficou
assim?”. Meu bonsai havia morrido e eu, de maneira alguma, queria acreditar neste
fato. No mesmo momento, peguei uma vasilha grande, fiz quatro furos em sua base
e comecei a encher de terra. Usei a terra das minhas outras plantas, até encher
a vasilha, mesmo que para isso elas tivessem que morrer. Peguei todo o húmus
que havia próximo de suas raízes e acomodei o bonsai, pois as outras plantas
não eram tão importantes como ele. Tentei fazer com que este processo fosse o
mais rápido possível, evitando a secura das raízes pela falta dos nutrientes do
descontato com a terra. Quando terminei, eis a seguinte cena na qual eu me
encontrava: estava toda suja de terra, molhada e cansada, sentada em frente a
planta e convicta de que eu a havia salvado. “pronto, agora é só regar todos os
dias, e esperar mais algumas semanas, que logo ele vai voltar a viver”. Isso
foi o que eu tentei dizer a mim mesma naquele momento, embora no fundo eu já
sabia que a chance de tê-la perdido era quase total. Em poucos minutos, fui até
a cozinha, e quando voltei lá fora, meu bonsai estava no chão, sendo jogado de
um lado para o outro, com suas raízes expostas e seus pobres galhos secos sendo
distorcidos pelo meu gato, que brincava com ele com muito entretenimento. Na
mesma hora, expulsei o gato, e a sensação de raiva fluiu no meu corpo, se
espalhou pelos meus capilares faciais, corou minhas bochechas. Pensei, então,
“agora sim, minha planta morreu de vez, é tudo culpa do gato”. E lá estava eu,
mais uma vez, revirando a terra, juntando o húmus e acomodando o bonsai
novamente, na reduzida esperança de salvá-lo.
O sentimento de perda ainda não é
algo que nós humanos estamos acostumados a lidar. E comigo, não foi diferente.
A ideia de perder o meu bonsai logo foi recebida como uma negação pelo meu
inconsciente. Depois de um tempo, eu havia parado para refletir sobre o
ocorrido, e cheguei à conclusão dura de que não havia nada que eu pudesse fazer
no momento em que tentei socorrer a planta. Nem toda terra, todo húmus ou
qualquer outra tentativa de resgate seria capaz de trazer de volta a vida; e a
culpa, translocada ao pobre gato, também não era dele.
“Mas o que aconteceu então?” Percebi
que uma coisa aconteceu: o tempo passou. E não passou mais rápido que o normal,
ou de forma mais ligeira, ele passou despercebido, assim como o faz todos os
dias. Quantas vezes eu saí correndo pra faculdade, e passei bem em frente ao
meu bonsai e deixei de o aguar. Por quantos momentos, passei por seus galhos e
não reparei nos sinais de suas folhas descuidadas? Quantas vezes a rotina
deixou de lado a beleza e o carinho das coisas mais simples e estas tornaram-se
banais? E com ainda mais profundidade, quantas vezes eu realmente cultivei o
real sentido que aquele presente que me foi dado representava? Será que cultivei
bem aquelas amizades, ou elas também ficaram deixadas?
O tempo está passando todos os dias,
e é tempo de cultivar as amizades, de renovar as gentilezas, de dar mais
sorrisos, olhar para o próximo. Quantas faces você viu no caminho de chegar até
aqui nesta noite? Em quantas delas reparou algo de especial? Já reparou em quem
está ao seu lado, ou apenas escolheu um lugar de forma objetiva e calculista,
pensando onde seria mais adequado as suas necessidades? Na nossa sociedade,
ainda predomina uma alienação acerca do mundo ao nosso redor, e as vezes,
vivemos a vida em uma esteira, começando cedo todos os dias, em um constante
realizar de tarefas e objetivos, até que venha o fim do dia. Mas o tempo
continua passando, e é tempo de olhar as paisagens nossas de cada dia, olhar
para os horizontes no fundo da cena, respirar o vento na janela do carro,
cultivar os laços afetivos, regrar nossas plantinhas.
Aqui ainda estamos, na terra, dia 13 de
novembro, ano 2019; talvez tenham se passado mais alguns minutos. Esta é a
nossa localização atual, e lá fora existem mais 7 bilhões de pessoas. Todos
seres de carbono, findados em matéria, essência e no tempo. Um dia, o cair das
folhas chegará para todos nós, e voltaremos a terra, que adubará novas árvores,
nutrirá sua seiva e revitalizará suas folhas, sejam elas sagradas ou não. Nós
não poderemos evitar o tempo, mas em sua linha, ainda podemos nos eternizar uns
nos outros, em dádivas finitas mediante os dígitos temporais, para que o cair
de todas as folhas seja natural e bonito como o outono, que forra a terra e
finaliza mais uma estação em harmonia, para que depois venha, então, a
primavera.
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