História Experimental: Vosso Monstro pt. II - fim



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Não há culpa de modo algum em vossa senhoria. É chegada a hora de deixar tal lugar asqueroso e mortal. Os demônios já se serviram demais de meus mil pedaços. Quando não houve mais nada para alimentá-los, enfim se cansaram. Os dias passaram depressa enquanto estive fora. O céu hoje está totalmente azul. O astro celeste aquece a terra enquanto a piso e ilumina o caminho para que alcance a ti. Nunca estive tão vazio, e mais ainda, nunca soube que uma casca vazia poderia andar. Ando passo a passo e ouço o eco, dentro do peito, reverberar.

Que doce é respirar o ar livre! O vento faz cócegas em meu rosto e passeia pelas minhas cicatrizes, como um amigo que há muito não se vê e logo faz com que se sinta bem. Olho à minha volta e as montanhas amarelas se erguem imponentes, os meus pés afundam pois o terreno é movediço. Mas melhor é estar fora do Inferno ao qual habitei por tanto tempo!

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Caminho por mais tempo do que vivi e não encontro lugar algum. Para onde foi o mundo ao qual fui expulso? As casas, os castelos, os cavalos de metal que cortavam os caminhos e os enormes dragões que cortavam o céu com seus jatos brancos, tão altos que eram quase indistinguíveis das estrelas? E astro que tão bem me recebeu, porque agora provocas bolhas em minha pele?

O céu tão belo azul se tornou massacrante. Não há lugar sem dor onde pousar os pés. Cada passo mancho essa terra amarela e fofa de meu sangue. Talvez eu nunca tenha realmente saído do Inferno. Os demônios devem estar devorando os últimos pedaços de minha cabeça e com isso, brincando com minha vida como um ventrículo. Criando sonhos nos quais as montanhas amarelas se movem. Nunca há descanso, nunca há paz.

Penso sentir o esgotamento de meu corpo. Antes do Inferno deixar, um dos diabretes me sussurrou que nunca olhasse para trás, uma vez aqui fora, ou estaria para sempre perdido. Agora olho para trás de segundo em segundo, e o que vejo me amedronta.

Meus passos não marcam o chão.

Eles simplesmente somem, como se nunca tivessem estado lá.

Mas o que é então essa dor que sinto nos pés, profundamente cortante? Os meus ombros estão cansados e minha boca clama aos céus: PAZ!

Eis que então vejo no horizonte uma sombra. A sombra se aproxima à medida que avanço e no próximo instante eu estou ao seu lado. É Ela. É a ti quem vejo. Ela é linda. Tu és linda.

"Oi". É tudo o que tu tens a me dizer. Tu sequer olhas em meus olhos para dizê-lo.

Sinto a placa como faca que perfura o estômago, corta todos os órgãos internos e encontra seu caminho pela parte de dentro das costelas até o coração. E lá ela fica, fincada. É destroçante. É Pura Destruição.

"Vosso monstro ainda a ama, minha senhora", eu a digo. Tu ri em alto e bom som. Aquela gargalhada que antes era meu objetivo de vida.

Tu se aproximas, sinto teu perfume.
Aqueles cabelos negros nunca mudaram.
Tu abres a boca singelamente desenhada, bela de se beijar e de se ver.

- Morra no deserto.

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