História Experimental: Feminismo

Seus olhos estavam vidrados em mim, já fazia meia hora. O que ela tanto olhava, o que ela tanto pensava? Porque ela não chegava pra conversar comigo? Será que todos os sinais não demonstravam o quanto eu queria conversar com ela?

Estávamos sentados, mas em mesas diferentes. Era um salão grande, com espaço o bastante para acomodar 100 pessoas com obesidade mórbida. Vestia meu terno simples, aliás, o único que eu tinha. Ela estava com um vestido preto - bem provocante aliás - que além de um decote bem atraente, acompanhava as curvas do seu corpo. Olhei para a mesa em que estava sentado, era uma decoração bem brega. O centro da mesa tinha uma flor dessas de plástico e a mesa estava coberta por um pano branco, bem parecido com um vestido de noiva. É verdade, era um casamento. Talvez fossem naqueles segundos em que fiquei olhando pra ela do outro lado do salão, em que me esqueci o que fazia ali. Não era possível, ela nem disfarçava, estava olhando pra mim diretamente. Chegou um momento em que achei muito discrepante, aqueles olhos verdes olhando pra mim, virei pra trás e olhei se tinha alguém mais interessante que eu nas mesas atrás de mim. Não tinha ninguém, apenas alguns velhos, conversando sobre como eram pegadores quando eram mais novos. Acompanhei um pouco da conversa, eles diziam que as mulheres de antigamente eram mais difíceis, você tinha que conquistar, hoje é só ter umas frases prontas... É, desinteressante.

Olhei pra ela novamente, ela sorria pra mim, como se dissesse "que bobo, não sabe que estou olhando pra ele". Ah, ela estava me testando. Será que queria que eu fosse até ela? Será que queria que eu a conhecesse, perguntasse seu nome, passasse a mão pelos seus longos cabelos vermelhos, ligeiramente encaracolados e depois beijá-la no rosto branco como a neve salpicado de pequenas pintinhas? Não, não era possível. Ela era muito linda. Me remexi na cadeira, tentando me sentar corretamente, talvez parecer mais alto.. ela piscou? Ela piscou pra mim?

Aquilo era demais, duas horas se passaram, nesse meio tempo, ela havia se levantado e vindo até mim - eu parei de escrever na hora - e deixou um origami na minha mesa. Era um pássaro de origami. Um belo Tsuru. Fiquei olhando ela enquanto voltava para a mesa dela, andava graciosamente, seus passos eram certos, precisos, e ela parava de tempos em tempos pra olhar pra mim. Acho que ela via se eu estava olhando pra bunda dela ou pra ela. Não sou um tarado, claro que eu estava olhando pra ela. Afinal, a bunda fazia parte dela. Ah, que idiotice escrever isso, vou apagar.

Ela tinha ido ao banheiro. Eu estava agora aqui, sentado e mexendo no Tsuru. Fiquei virando, mexendo, e vi algo escrito no centro, uma letra... "T" que puxava para o centro da dobradura. Comecei a desdobrar, vi de relance uma palavra, outra palavra, quando desdobrei tudo, eu li a frase e fiquei paralisado. Me levantei ainda chocado, atravessei o salão até onde ela estava sentada antes, e vi que tinha outro Tsuru bem em cima da mesa. Abri rapidamente e meu coração começou a bater muito forte. Ah cara, ah cara, o que ela quer fazer, porque ela mandou isso. Corri até o banheiro feminino, por sorte, ninguém me viu entrando.

Quando entrei no banheiro, ela estava lá. Olhando para o espelho, passando um batom vermelho.

- Você demorou - ela disse.
- Eu demorei a ler, a vir não - eu disse. Sim, não sei o que tinha melhor pra dizer. Ela veio andando na minha direção e passou por mim. Trancou a porta atrás de mim, que dava acesso ao banheiro. Eu ainda estava meio congelado, e não consegui me virar pra ver, apenas ouvi o barulho da trava da porta fechando. Um calafrio correu meu pescoço.
- Você é todo meu agora - ela me virou e começou a me beijar. Sinceramente, acho que nunca estive entre lábios tão macios. Acho que nunca... ah esquece, cara, foi incrível. Sabe quando você come aquele sorvete, em um dia quente, e sua boca recebe a todo momento sensações geladas e agradáveis? Foi mil vezes melhor que isso. Enquanto ela me beijava, um braço se apoiava atrás do meu pescoço e o outro me puxava pela cintura. Eu tenho que confessar, diante disso, me senti um boneco. Não consegui me mover, ela me guiava pela dança, eu apenas a seguia, meio bobo... bem bobo, aliás, terrivelmente besta.

Ela parou de me beijar um pouco, e seus lábios doces disseram outras palavras:
- Você beija muito mal.
- Ah... desculpe - fiquei bem sem graça.
- E é bem feio.
- ... desculpe - fiquei meio triste com essa.
- Na verdade, eu estou bem bêbada, e você é um inútil, nem pra se aproveitar de mim.
- mas ...
- Não, chega, vou embora - ela me empurrou, destrancou a porta e saiu andando por ela.

Fiquei meio chocado no início, demorou um pouco pra que eu começasse a chorar. Lavei o rosto e então me dei conta que estava no banheiro feminino. Quando saí, não sei quanto tempo havia passado, mas a festa tinha acabado. O noivo e a noiva haviam saído pra noite de núpcias e os convidados já estavam roubando os salgados e doces pra dentro das bolsas. Antes de ir embora procurei ela mais uma vez, não a encontrei. Mas enquanto passava pela mesa dela, pra pegar as minhas coisas na minha mesa, vi mais um Tsuru. Esse era novo, não estava ali antes, sorte ninguém ter pego. Abri ele e li algo parecido com o texto do segundo Tsuru, apenas a última palavra era diferente: "...no banheiro masculino".

Comentários

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    Abraços cordiais.

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