História Experimental: In Memoriam Iasmin

Era um dia um pouco chuvoso ao sudeste de Goiânia. Em Catalão, a cidade conhecida por ser "A cidade das flores", caíam do céu gotas finas que só molhavam se algo ficasse muito tempo embaixo das nuvens escuras. O vento soprava, desviando a chuva para acertar aqueles que achavam que guarda-chuva os protegeria. As ruas simples, algumas mal tinham calçada. A terra era farta e por isso, as casas eram largas e os muros cercavam os limites de cada lote. Alguns bairros eram mais simples que outros, com casas sem reboco, mostrando os tijolos e suas junções de cimento. Uma menina brincava no meio da lama com seus irmãos menores em uma dessas casas simples. Até ouvir sua avó gritar.

- Iasmin! Vai tomar banho já! Você precisa ir na feira ajudar sua mãe!
- Já vou vó - Iasmin respondeu e voltou a brincar.
- Iasmin! Vai agora antes que eu te busque pela orelha menina! - Sua avó saiu da cozinha, onde estava arrumando alguma coisa e foi até o quintal - Cadê a responsabilidade! Anda! Chega de brincadeira! Levanta! - Foi gritando atrás da menina enquanto ela ia até o banheiro.

- Você vai lavar essa roupa menina! Cheia de lama! - Sua avó disse quando Iasmin saiu do banho vestida com uma roupa nova e entregou a roupa suja para a avó.
- Você quer que eu leve algo para minha mãe, vó?
- Sim, toma essa marmita, até a hora do almoço vai esfriar, fala pra sua mãe deixar no sol - A avó olhou o tempo lá fora pela janela da cozinha - Se sair algum sol hoje.
- Tudo bem vó. Estou indo.
- Toma cuidado em minha filha! Não ande nem fale com estranhos, direto para a feira com sua mãe!
- Tudo bem. Tchau vó.
A avó a levou até o portão e o abriu. Pediu que ela tomasse cuidado mais uma vez e ficou olhando até que a menina virasse na esquina duas quadras à frente da casa. Era um trajeto simples, calmo, tranquilo. Por sorte, não existiriam lobos pelo caminho.

Uma coisa que Catalão se orgulha, assim como toda cidade, é sua feira. Na feira, as pessoas sempre vão, não importa a hora do dia. Se for uma feira coberta, melhor ainda, irresistível para mulheres que às vezes levam seus maridos para ajudarem a carregarem as compras. Às vezes até as próprias vendedoras levam seus maridos para ajudar a atrair clientela feminina para a loja, tudo pela venda. Era domingo, a feira estava cheia, repleta de clientes para serem atendidos. Iasmin não havia chega na feira, mas só precisava de mais três quarteirões e uns 15 minutos talvez. Se corresse, ainda dava pra chegar mais rápido, mas sua avó sempre dizia para olhar para os dois lados da rua, mesmo sem carros.

Enquanto andava, Iasmin pensava se seria uma princesa algum dia. Imaginava se um dia um príncipe encantado viria buscá-la em seu cavalo branco, como nos filmes. Ou até um menino que ela pudesse abraçar e brincar na lama como brincava com seus irmãos. Ela viu uma flor nascer no asfalto do meio da rua, pensou que talvez fosse belo levar para a mãe. Uma flor que nasce no meio de pedras, e ainda sim, sobreviveu. Claro que Iasmin não considerou tudo isso, mas ela pensou que ela uma linda flor alaranjada. A colheu e segurou na mão que não estava ocupada. Continuou a andar pelas ruas sem calçamento, desviando de uma poça aqui, uma ali. Faltavam duas quadras e estaria lá.

Na feira, a mãe de Iasmin estava atendendo três clientes ao mesmo tempo. De vez em quando alguém entrava na loja e pedia pra ver uma peça, mas a mãe de Iasmin sabia, eram só aquelas clientes observadoras, que nada compravam, só andavam pelas lojas. Porque elas faziam isso? Eram burras? Eram mal-comidas? Bando de mulheres ricas de merda. Todas um monte de lixo andando por aí cheia de roupas supérfluas. E aquela mulher do pedreiro que estava ali com o marido há uma hora e não comprava nada? Se pelo menos aquele marido dela servisse pra alguma coisa... Olhou na direção entre as pernas dele, e depois olhou pros olhos do pedreiro. Ele estava olhando para ela e deu uma piscadinha. Ela olhou na direção do seu marido, o padastro de Iasmin estava atrás do caixa, recebendo o dinheiro das clientes satisfeitas.

Algumas tomavam a liberdade de inclinar um pouco mais que o necessário para provocá-lo a olhar o decote delas. Outras abaixavam pra pegar algo, e como o espaço da loja era pequeno, roçavam seu corpo no dele. Ainda existiam terceiras que esbarravam "sem querer" nas partes íntimas dele, e depois deixavam um telefone, caso ele quisesse mais que isso. A mãe da Iasmin sabia disso, ela ficava com um pouco de ciúme, mas era necessário. Que mal elas podiam fazer? Quem ia para a cama com ele todas as noites e era casada com ele, era ela.

O padrasto porém, se sentia muito provocado. Quem eram essas mulheres e porque eram tão safadas? Elas não eram puras, não eram dignas, eram nojentas, mereciam tapas, mereciam que alguém as comesse e depois cuspisse na cara delas. Tratassem elas como as vadias que elas eram. Elas praticamente pediam pra ele: Me bate com tudo, vem, cospe em mim, sou safada, nojenta. Ah, ele ficava excitado com isso. Algumas vezes, ele até conseguia escapar dos olhos da esposa, e mandava uma mensagem para uma das mulheres novatas que trabalhavam na loja da frente pra encontrá-lo no banheiro. Quem ligava? Elas eram safadas, elas pediam por isso, elas queriam ele. Precisava de dar mais uma "ida no banheiro", precisava se controlar... Mas tinha esquecido o celular. Disse para sua esposa:
- Amor, vou dar uma ida lá em casa, acho que esqueci o celular, estou esperando uma ligação importante.
- Tudo bem amor, acho que a Iasmin já está chegando também, minha mãe ligou e disse que ela já saiu da casa dela. Ela me ajuda no caixa. Ela é uma menina inteligente, já sabe até contar dinh..
- Ta bom amor - interrompeu o marido - já volto - deu um beijo na sua esposa e saiu da feira.

Iasmin estava chegando na porta da feira quando viu um rosto saindo dela. O rosto a olhou. De cima a baixo, de um lado para o outro. O olhar era diferente dos outros dias. Na verdade, ela tinha memória daquele olhar em alguns pesadelos que tinha à noite... Ou pelo menos, ela achava que eram pesadelos. O rosto chegou mais perto e pegou sua mão. O rosto pronunciou palavras baixas como "oi lindinha", "venha dar uma volta com o papai", "vamos tomar sorvete". Iasmin foi andando junto aquele rosto. Tentou balbuciar "mas a mamãe quer essa marmita, peguei essa flor para ela", mas uma mão forte apertou sua boca. Ela começou a chorar, o motivo principal era que não sabia o que estava acontecendo. Em um segundo ela viu a porta da feira, sua mãe logo ali de costas, atendendo uma cliente, e no próximo, ela se viu em um canteiro de obras sem trabalhadores por ser domingo. Será que era o príncipe dela? Ela não sabia o que estava acontecendo, uma mão forte a obrigava a apertar em coisas que ela não sabia que existiam, e sensações estranhas à ela jogavam com seu corpo. Iasmin sentiu uma dor forte quando algo a feriu por baixo. Um monstro estava em cima dela e tentava machucá-la. Um monstro destruía seus sonhos e lágrimas corriam de dor dos seus olhos que não conseguiam mais se abrir, cheios de sangue. Sangue saía de seu corpo, sangue que a fazia gritar, chorar de dor. A dor emanava por todo o corpo dela, dor preenchia sua alma, pura e somente dor. O rosto que agora era um monstro batia no seu rosto, dava tapas e gritava com ela, dizia que ela era uma menina nojenta, cuspia nela e dava socos no rosto dela. Ela não entendia o que era aquilo. Porque a dor era tanta, porque ela sofria tanto, porque alguém estava fazendo aquilo? Ela tinha feito algo de errado? Ela tinha que ter feito, ninguém a machucaria tanto sem motivos. Ela começou a gritar "desculpa", "desculpa", "DESCULPA EU NÃO QUERIA TER FEITO NADA", "DESCULPA FOI MINHA CULPA MAS NÃO ME MACHUCA, POR FAVOR MOÇO, N..". O monstro pegou um pedaço de pau e a acertou na cabeça repetidamente até que as palavras parassem de serem ditas.

O rosto se ergueu e depois de seu momento de prazer ter passado, ele percebeu o que havia feito. Tentou consertar, não conseguiu, não havia conserto. Pegou um pedaço de pau e bateu com mais força na menina até que a raiva passou. Agarrou o corpo da menina violentamente pelo braço, jogou, como se joga uma boneca de pano destroçada, em um tanque misturador de cimento e saiu dali. O sol ainda estava no topo, as pessoas ainda não tinham almoçado porque no domingo as famílias almoçam tarde, uma flor colhida no asfalto estava amassada em uma obra. Uma flor nascida entre pedras. A chuva engrossou um pouco e o cimento do tanque ficou mais mole, lentamente arrastando um pedaço da menina para dentro. O corpo só foi encontrado no dia seguinte, quando os pedreiros que trabalhavam na obra encontraram e chamaram a polícia.

Iasmin. Um nome inspirado na flor "Jasmim", uma flor oriental, símbolo da beleza e da tentação das mulheres.
Porque hoje, flores morrem antes de nascer?

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