Quando o homem vira um homem.




“Finalmente eu estou do lado de fora”, pensou o homem, em seu estado de espírito mais sereno, assim que colocou seus pés do lado de fora do hospício. Como se todo o sentido que lhe faltara em sua vida toda tivesse vindo à tona num piscar de olhos, o homem pensou: “FUGIR! CORRER!”. E ele assim o fez, correu pelo bosque que rodeava o prédio principal da fundação que o prendera por tantos anos. Finalmente ele estava livre e seguro; estático ele pensava em qual seria o próximo passo a ser tomado em seu plano de fuga, que se resumia a plano nenhum.
O hospício (ou “hospital psiquiátrico”, como preferiam os doutores que lá trabalhavam) era um prédio branco e retangular, que expandia seu comprimento por todo o gigantesco lote onde o homem residira por vários anos. Rodeado por muros altíssimos de pedra, o prédio ocupava a parte central do bosque. O bosque, por sua vez, era gigantesco, em seu fim se encontrava uma floresta mais gigantesca ainda. Árvores imensas prolongavam sua altura ao redor de trilhas mal feitas por animais silvestres. O bosque possuía dois riachos, um ao sul, perto de onde ficava o prédio principal, e outro ao extremo norte, ao lado do penhasco que delimitava o começo da floresta subtropical.

O homem estava à beira do riacho sul, olhando seu reflexo na água, ele descansava depois de ter se aproveitado da confusão repentina, cortado a cerca, pulado o muro, com ajuda das caixas de leite que o entregador deixara encostadas no começo da manhã e corrido quase três quilômetros sem parar. O homem era magro, alto, cabeludo, temperamental e, não se esqueça, diagnosticado “perigosamente insano”, e, garotas, ele é solteiro.
Mais importante que fugir, mais importante que sobreviver à fuga, mais importante que descansar e mais importante do que tudo, uma coisa devia ser feita: o homem deveria contar o segredo ao seu irmão. Nenhum dos dois sobreviveria muito tempo sem saber o segredo, e o homem sabia disso. O homem podia ser louco, mas as coisas importantes ficam gravadas involuntariamente na memória. Seu irmão morava na mesma cidade em que o homem estava, ele sabia de cor o número de telefone de seu irmão e parte do seu endereço. O homem então rumou ao sul pela trilha mal feita, com esperança de encontrar civilização (bem longe do hospício, de preferência).
Depois das duas horas e dos vinte e nove minutos mais longos de sua vida (sim, uma caminhada frenética por um bosque com animais de todo o tipo pode ser mais demorada que ficar preso em um quarto estofado e branco de hospício) o homem se deparou com uma diminuição na quantidade de árvores e, logo após, avistou um conjunto de habitações velhinhas, porém habitadas. Uma estrada se prolongava infinitamente até o que parecia ser a cidade, dessa estrada saía uma ruazinha precária que mal sustentava a si mesma. Nessa ruazinha havia três construções, um prédio de dois andares quadrado e caído, um posto de gasolina e uma construção retangular, que parecia ter sido um restaurante a algum tempo atrás.
O homem era mais esperto do que muitos outros homens, ele sabia que se se aproximasse do posto de gasolina vestido como um residente do hospício não seriam horas até sua volta a um quarto de hospital, e sim minutos. O homem tirou toda a sua roupa, a jogou em um canto escondido, sujou-se todo de terra, e, nu, sujo de terra e descabelado, começou a correr desesperadamente em direção ao posto de gasolina gritando: “Socorro! Socorro! Fui atacado no acampamento! SOCORRO!”. Depois de um teatro bem bolado, de um banho, de um telefonema para o irmão e de muitas desculpas e agradecimentos, o homem estava limpo como nunca e em sua carona para a delegacia mais próxima, na cidade. Logicamente o homem não iria prestar queixa de um roubo que nunca acontecera num acampamento que não existira. A caminhonete com o homem e um senhor careca e falador dirigindo adentrou a cidade, e uma ideia surgiu na mente brilhante do homem.
“Ei, Martim. É Martim, certo? Será que o senhor poderia me deixar na casa de meu irmão, em vez da delegacia? Eu estou sem dinheiro e meus documentos também foram roubados, eu ainda estou abalado pelo choque e...”, o velho Martim interrompeu o homem e concordou, para surpresa do carona. Trinta e sete minutos e quarenta e nove segundos depois, o homem estava na porta da casa de seu irmão, e Martim, o velho careca da caminhonete saía de volta ao posto. O homem tocou a campainha freneticamente, assim que perdeu Martim de vista. Não demorou nem vinte segundos até que o irmão atendesse a porta, a surpresa só não foi maior, pois o homem havia ligado antes para confirmar o endereço e avisar de sua chegada.
Na sala da casa do irmão (era um ambiente bem decorado e, apesar de pequeno, era bem arejado e claro. O homem estava ao lado do irmão, sentados no sofá, de frente para a TV e logo abaixo da janela de madeira, na parede de madeira) o homem e o dono da casa discutiam, o homem contava como fora sua fuga do hospício. Repentinamente o irmão pergunta sobre o segredo que o homem mencionara anos atrás, antes de ser enviado ao manicômio (a contragosto do irmão, obviamente). O homem diz: “Irmão, logo eu falarei, mas é necessário paciên...”, o irmão interrompeu bruscamente, dizendo que mal importava como ele fugira e o que era necessário, e agarrou o homem pela gola da blusa, arrastando o faminto homem fraco até a cozinha e apontando-lhe a faca mais afiada no pescoço. “NÃO! Eu vou contar, eu vou contar, irmão!”, implorava o homem, que de certa forma entendia a fúria do irmão. O irmão jogou o homem para o lado, homem e irmão agora estavam ao chão, o irmão ameaçava o homem com a faca afiada. A situação se invertia, o homem agora estava calmo e submisso, o irmão parecia ter tomado sua ira e sua loucura, e usado ambas para investir contra o homem. O irmão havia esquecido todo o propósito do segredo, agora o intuito era um: matar, vingar-se do homem por ter o abandonado e sem nem mesmo contar o segredo. O irmão começou a arranhar lentamente o pescoço do homem, enquanto ele chorava e suplicava aos berros: “Não! Por favor... Eu... Eu... Eu não sei o segredo, eu não lembro! Eu nunca soube! NUNCA!!!”
22h31min, mais um homem, entre muitos e muitos homens iguais, é acordado de um pesadelo no hospício. “Remédio.”, disse a enfermeira gorda e ranzinza. Agora é a vez de um homem ficar calado e de todos os outros homens falarem: “Os loucos não tem voz”. Um homem não sabia o segredo, nunca soube. Mas um homem sabia o segredo para sair do mundo onde todos vivem em paz, e ir para o mundo onde só um homem vive em paz: loucura.

Autor: Diego Malachias

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