Não nos sentimos seguras




Em meio as rotinas infinitas; em meio ao movimento da cidade. Nela, cada um tem os seus horários. A maioria das pessoas escolhe correr atrás dos seus afazeres sob a luz do dia, enquanto uma outra parcela trabalha pelas noites. Juntamente com a translação do nosso globo, assim a dinâmica urbana se altera nas cidades, e o fluxo parece não acabar nunca. Porém, existem lugares certos e horas certas, nos quais ainda é possível encontrar uma silenciosa paz.

Eram três horas da manhã, de uma quarta-feira, e não uma daquelas noites de final de semana, em que as ruas estão sempre movimentadas perto dos clubes noturnos e bares, quando, atravessando a cidade - zona norte-centro-zona sul-, pude presenciar uma dessas experiências sobre a sensação de liberdade. Antes de sair de casa, observei ao redor da rua, a mesma rua que era tão cheia durante o dia e que gerava medo de assaltos a noite trazia uma grande paz de madrugada. Mas essa paz era pra qualquer um? E se eu estivesse sozinha, a sentiria também? Minha mãe colocava algumas coisas no carro, enquanto eu pensava na garagem. Àquela hora, soprava um maravilhoso vento frio e inacreditável, em plena estação de verão. 

Quando o carro partiu, em todo o bairro se observava o mesmo padrão silencioso e o mesmo vazio nas ruas, até quando, de repente, vi um único homem, que parecia ter uns trinta anos, vestido com roupas esportivas caminhar tranquilamente pela avenida, como se não fossem três horas da manhã,  como se não houvesse perigo nas ruas, como se qualquer um pudesse sair andando naquela hora e  naquele lugar, naquela maravilhosa paz. Senti muita inveja daquele homem, primeiramente, porque ele era um homem e podia andar sozinho de madrugada, sem medo de ser violentado. Além disso, ele ouvia música no celular, e quanta inveja eu tive de não poder andar despreocupada com o meu celular a mostra daquele jeito, pois, mesmo sendo meu, andar com um aparelho eletrônico na rua era uma certa proibição pessoal, cuja sanção negativa era o desconfortável tormento de atrair um assalto. Acho que quando as pessoas já foram roubadas três vezes, elas criam traumas, e, por conseguinte, os traumas criam as regras. Também me invejou como aquele homem andava sem ter a consciência pesada de trazer preocupação a alguém. Se fosse eu, pensaria a todo instante que minha família estaria preocupada, só de saber que eu estaria sozinha. Eu, uma mulher, sozinha na rua de madrugada. Quais as chances de eu ter essa experiência sem todas essas preocupações extras? 

Por um instante, senti aquela sensação de liberdade, mas não em mim, apenas naquele homem. Qual seria o diferencial dele, em relação a mim, que o permitia ser tão livre? Seria a idade? Se acaso eu   estivesse na casa dos trinta anos, será que, ainda assim, andaria com tanta segurança? Triste pensar, mas acho que não. Acho que é sobre ser mulher, sobre ter crescido cercada de "ideais", os quais, um dia, nos levam a perguntar como foi que as coisas chegaram a esse ponto e o que fazer para que elas mudem. Acho que é sobre crescer em uma sociedade que ensina que você deve ter medo, porque a maior parte dos casos de violência e roubo acontecem com "o sexo mais frágil" e porque várias mulheres são estupradas a cada hora no meu país. Te aconselham contando histórias de terror, para criar o medo que vai te "proteger" e te impedir de se arriscar em meio aos perigos da cidade.

Talvez, para aquele homem, não houvesse diferença em ser três horas da manhã, talvez não houvesse perigo nas ruas, talvez, para ele, qualquer um pudesse sair andando naquela hora e naquele lugar, naquela maravilhosa paz. Mas, ainda que um dia eu tenha a oportunidade de vivenciar aquela mesma experiência, não posso afirmar que a minha mente e os meus pensamentos vão me deixar ter a mesma  sensação que o despreocupado moço teve; não depois de anos de experiências absorvidas nessa  sociedade cheia de histórias trágicas, que serviram de molde para a construção dos mecanismos de defesa do meu aparelho psíquico. 

O carro atravessava a cidade, e minha mãe estava feliz por não estarmos atrasadas para buscar o meu pai. Era fácil observar que, em cada espaço, as dinâmicas sociais eram diferentes naquela hora da madrugada. Em alguns lugares, três horas da manhã representava um momento raro, fora da correria e do acelerado ritmo cotidiano. Enquanto observava as ruas, me sentia triste por experimentar aquela tranquilidade lá fora apenas com os olhos, observando pela janela, sem poder sair andando como o homem que eu vira há pouco tempo, caminhando sozinha e sem preocupações, naquela madrugada tranquila, sentindo o maravilhoso e inacreditável vento frio soar em pleno verão. 















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