História Experimental: Pelo Telefone


Alô. Tudo bem? Ah que bom. Aqui não está nada bem. Vivo pensando em coisas demais. Olha, sei que é cedo demais, mas tenta voltar um pouco no tempo. Você lembra daquela vez que conversamos olhando o mar? Conversamos sobre muita coisa. Faz muito tempo. Sim, muito tempo. É verdade, muita coisa aconteceu desde então. Mas, tá, entendi, olha, me escuta. Eu lembro como se fosse hoje, agora mesmo, o seu cabelo cheio de pequenos cristais de areia balançando ao vento, meio cheios de sal porque tínhamos acabado de sair do mar. Tenta fazer uma coisa, por mim. Volta lá, pensa como se estivesse lá, sinta como se estivesse lá, naquele instante que minhas palavras não eram mera bobagem como agora. Lembra de que naquele momento, sem que eu disse uma única palavra, você conseguia descobrir as coisas apenas olhando nos meus olhos. Olhe nos meus olhos, é tudo que eu te peço, mais uma vez, apenas.

Eu sinto como se fosse obrigado a deixar meus sonhos. Não pra ser feliz, mas pra continuar vivo. Sinto que o meu sonho de achar uma mulher perfeita, incrível e sincera pra envelhecer seja impossível pois eu sou só um cara tentando não errar, tentando não cometer os piores erros da minha vida. Me sinto triste por ter perdido uma vida. Me sinto destruído por um vida. Me sinto culpado por ter mudado uma vida. Perdido, destruído e culpado. Isso é o que sinto. Nesses três sentimentos encontra-se escrito meu fim. Um fim que não quer me abandonar agora, e eu mal consigo parar de pensar nele. As janelas dos prédios são atraidamente altas, as cordas são sensualmente forcas, as ampolas são sedutoras e os instrumentos afiados clamam minha pele. Não quero ser dramático, nem literário, mas real. Não estou depressivo, ainda vejo a alegria da vida, mas não a sinto. Consigo olhar pra fora da janela agora, ver várias casas com luzes apagadas, onde seus donos se divertem com as respectivas mulheres/amantes/namoradas/esposas e não ligam pra alma. Consigo ver famílias que se reúnem pra jantar ao redor de uma mesa cheia, felizes por estarem ali, mas em silêncio porque nenhum deles sabe o que acontece na vida do outro. Consigo ver ilhas sem água ao redor. Me machuca ver isso.
[...]
Ainda sinto vontade de chorar, mas não consigo me abrir. O meu ponto de abertura já passou, e quem podia me entender a não ser você, já morreu. 
[...]
Só resta você agora.
[...]
A vida foge de mim.
[...]
Foge de mim, que tanto a amei. Que tanto fui apaixonado e me entreguei por ela. Porque ela foge de mim?
[...]
A vida me abdica, eu logo, apenas posso assistir ela ir. 
[...]
Gostaria que você entendesse tudo. Eu não digo isso pra mudar tudo, pra nos tornar juntos, nem pra voltar aquele dia na praia, em que ... não, espera, não desliga ainda. Por favor, não desliga, eu imploro. Não me deixa aqui sozinho, pois se você desligar, a única coisa que vai estar aqui por mim vai ser aquela corda que amarrei no telhado e coloquei uma cadeira por baixo. 
[...] [...] [...] [...] [...]
Você já desligou.

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